sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Fechou todos os botões da sua camisa pálida e deu a última golada no café frio, quando sentiu um terremoto interno e teve que correr para o banheiro.
Ensaiava levar uma vida séria, com paletó, gravata, croissant e Foucault. Pra se um dia alguém fosse escrever um conto sobre ele pudesse descrever caminhadas de autoconhecimento na praça, momentos de criatividade no trabalho, e ainda acrescentar citações de algum ex presidente norte-americano.

Mas os contos nunca davam certo. Talvez porque a escritora estivesse passando por uma fase de certa infertilidade, ou talvez porque seus atos metódicos já tivessem sido usados em muitas crônicas. O caso é que esteja o personagem fumando um cigarro, trepando ou resolvendo um terremoto interno, a inspiração bate no escritor e o coitado tem que estar disponível. Geralmente a coisa é bem simples. Basta o cara agir normalmente e deixar que escrevam sobre o que ele está pensando. Como quando acidentalmente ele serve duas xícaras de café porque estava distraído imaginando que doideira deve ser o carnaval de Salvador, e o escritor registra as duas xícaras servidas como um claro sinal de solidão.
O problema é quando tem que faltar o trabalho, pra fingir que quer mudar de vida, encontrar destroços de uma nave espacial ou salvar uma garotinha suicida. Não se explica isso facilmente pra um chefe.
- Bom, é o seguinte, faltei ao trabalho ontem porque estavam escrevendo um conto sobre mim em que eu não vinha ao trabalho! É, um conto, um texto, sim, isso mesmo. Eu sou um personagem, oras! Você também. Coadjuvante ainda por cima.
Coadjuvante ou não, ele continua sendo o chefe.
Nesse conto, o rapaz da camisa pálidae do terremoto, teve uma daquelas visões repentinas do porquê veio ao munto e o que deve fazer desde então (coisas que só acontecem em contos) e resolveu largar o emprego, o curso de marketing, as aulas de tango que nem havia começado, e ir atrás do seu grande amor.
Foi até a empresa, pediu as contas, deu um abraço no chefe, fez um tímido discurso de despedida para os colegas de trabalho, apertou a mão de alguns e recolheu suas poucas coisas da mesa.
Fez uma mala sem exageros, sem camisas pálidas e sem esquecer a escova de dentes. Ficou em dúvida de qual livro levar, mas no fim pegou só o mp3.
Despediu-se da vizinha de frente, com quem nunca teve muito contato, mas sabia que ela era a pessoa certa para dizer que ia embora, pois contaria pra todo mundo.
Se certificou de pagar tudo que devia, embora não tivesse o costume de dever ninguém.
Twittou sua partida e prometeu checar seus e-mails de mês em mês.
Deixou seu gato com um amigo, mas não sem lágrimas nos olhos.
E por último, veio falar comigo. Que a minha inspiração voltasse, que eu fosse feliz e criasse um novo personagem. Insisti que ficasse, ou que me deixasse o acompanhar. Mas ele foi firme, me enrolou com uma história de que meu problema era ele, e que dá próxima vez eu escolhesse uma mulher, porque são mais complexas e dão mais assunto. Segurei pra não chorar e tive a impressão que ele também. Mas o canalha ia chorar era de felicidade. Aí, eu prometi escrever um último conto sobre ele, sobre isso. E ele respondeu: ''Escreve, mas vai ser um conto sobre você, e não sobre mim.'' .