quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Acho que o melhor momento pra morrer é lá pelos 85, depois de ter tido uma vida boa e um ano ruim. Se for depois dos 75 o que importa mesmo é a parte da vida boa e do ano ruim. Você vai sentindo a morte chegar e pensa na vida que levou e em como foi boa, em como foi feliz, na infância no quintal da vovó, na música ruim (e alta) que escutava na adolescência, no dia em que conheceu sua esposa, naquela Copa do Mundo (ou em várias delas), no nascimento da sua afilhada, em como foi triste quando sua mulher descobriu que não podia ter filhos, nos 40! ah como foi bom chegar aos 40.. e você se achava velho! Pensa na promoção que recebeu e na briga com a esposa no mesmo dia, que te fez decidir adotar uma criança, pensa no dia em que adotou a Carolzinha, lembra das viagens em família, dos almoços de domingo, dos truques de mágica no seu aniversário de 43. Lembra bem do dia em que sua filha adotiva falou que te amava pela primeira vez. Lembra de chegar em casa e compartilhar cada detalhe do seu dia com a mulher que amou a vida inteira e achar que nada podia melhorar. Então lembra do nervosismo pra conhecer o primeiro namorado da Carolzinha, e a felicidade ao ouvir que ela finalmente ia se casar com o vigésimo. Lembra da filha de noiva, mais linda até que a mãe, e de como você desconfiou que aquilo debaixo do vestido não era barriga de cerveja.. lembra da Malu nascendo, a coisa mais linda que você já viu, que te fez pensar como era possível amar tanto um ser humano.. Virou avô e a vida ficou perfeita, eram visitas todos os finais de semana, com tudo que uma neta tem direito. Lembrou de como ela te amava e de como quase deixou de acreditar nisso lá pelos 12 anos da Malu, quando ela só ficava no telefone com as amigas. Pensou em como isso tudo foi bobagem e em como a neta sempre gostou de você mais até que dos pais. Lembrou dos 15 anos dela, que festa! E dos 16, 17.. e do rapaizinho que ela apresentou ao avô primeiro do que a qualquer um, dizendo se tratar de um amigo, mas você já soube logo que perdera sua neta de vez. Mas não houve mal não, aposentados, sozinhos.. mas mais do que nunca juntos, foi isso que aconteceu com você e sua esposa, um amor antigo parecia de novo novo! E foram anos lindos, em que os dois se amaram como nunca antes, como só alguém que passa a vida inteira junto sem enjoar pode amar! E aí lembrou do ano passado. De sua filha mudando pra Madri logo após a morte de sua esposa. Você pensou em ir, mas não queria ser um fardo pra ninguém.. então começou a se sentir um fardo, a viver só de lembranças, a só saber falar de lembranças, contar lembranças, almoçar e jantar lembranças. E aí começou a sentir aos poucos, de leve, uma certa vontade de partir. Pensava assim mesmo ''quero partir'', porque querer morrer é feio, é pecado. Depois de uma vida tão boa, querer morrer? Queria partir, queria ir pra próxima, ir encontrar sua esposa no céu, ou quem sabe voltar pra mais uma aventura, mais uma vida cairia muito bem! A memória já falhava, as lembranças iam parecendo meio embaçadas e você corria pro álbum de retratos quando esquecia a cor do olho de alguém, até um dia se viu perguntando ''Quem é essa mesmo?'' e te disseram ''É a Malu, sua neta.''. Foi inevitável, caiu de cama, quis morrer, pediu pra Deus que te levasse logo, que não dava mais e uma noite você não aguentava. Não queria se despedir, disse que ia ser muito triste mas a verdade é que tava morrendo de medo de esquecer o nome de alguém. Deitou na cama às nove, pensou até cansar e por fim, lá pra uma da manhã, agradeceu a Deus pelos seus maravilhosos 84 anos de vida e pelo terrível último ano, que te fez morrer sem querer ficar, mas morrer em paz por saber que foi feliz. Fechou os olhos, fez uma oraçãozinha que sua mãe te ensinou quando criança e dormiu. Isso sim é forma boa de morrer. Sem ressentimentos, sem ninguém dependente de você ficando pra trás. Morrer com a consciência limpa, com o coração a mil, com um corpo cansado de tanto aproveitar a vida. Isso sim é forma boa de morrer! E aí, depois de um sono de pura tranquilidade, você abre os olhos e se dá conta de que não está no céu, mas em casa e que provavelmente vai ser um dos sortudos que consegue chegar aos 91.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Fechou todos os botões da sua camisa pálida e deu a última golada no café frio, quando sentiu um terremoto interno e teve que correr para o banheiro.
Ensaiava levar uma vida séria, com paletó, gravata, croissant e Foucault. Pra se um dia alguém fosse escrever um conto sobre ele pudesse descrever caminhadas de autoconhecimento na praça, momentos de criatividade no trabalho, e ainda acrescentar citações de algum ex presidente norte-americano.

Mas os contos nunca davam certo. Talvez porque a escritora estivesse passando por uma fase de certa infertilidade, ou talvez porque seus atos metódicos já tivessem sido usados em muitas crônicas. O caso é que esteja o personagem fumando um cigarro, trepando ou resolvendo um terremoto interno, a inspiração bate no escritor e o coitado tem que estar disponível. Geralmente a coisa é bem simples. Basta o cara agir normalmente e deixar que escrevam sobre o que ele está pensando. Como quando acidentalmente ele serve duas xícaras de café porque estava distraído imaginando que doideira deve ser o carnaval de Salvador, e o escritor registra as duas xícaras servidas como um claro sinal de solidão.
O problema é quando tem que faltar o trabalho, pra fingir que quer mudar de vida, encontrar destroços de uma nave espacial ou salvar uma garotinha suicida. Não se explica isso facilmente pra um chefe.
- Bom, é o seguinte, faltei ao trabalho ontem porque estavam escrevendo um conto sobre mim em que eu não vinha ao trabalho! É, um conto, um texto, sim, isso mesmo. Eu sou um personagem, oras! Você também. Coadjuvante ainda por cima.
Coadjuvante ou não, ele continua sendo o chefe.
Nesse conto, o rapaz da camisa pálidae do terremoto, teve uma daquelas visões repentinas do porquê veio ao munto e o que deve fazer desde então (coisas que só acontecem em contos) e resolveu largar o emprego, o curso de marketing, as aulas de tango que nem havia começado, e ir atrás do seu grande amor.
Foi até a empresa, pediu as contas, deu um abraço no chefe, fez um tímido discurso de despedida para os colegas de trabalho, apertou a mão de alguns e recolheu suas poucas coisas da mesa.
Fez uma mala sem exageros, sem camisas pálidas e sem esquecer a escova de dentes. Ficou em dúvida de qual livro levar, mas no fim pegou só o mp3.
Despediu-se da vizinha de frente, com quem nunca teve muito contato, mas sabia que ela era a pessoa certa para dizer que ia embora, pois contaria pra todo mundo.
Se certificou de pagar tudo que devia, embora não tivesse o costume de dever ninguém.
Twittou sua partida e prometeu checar seus e-mails de mês em mês.
Deixou seu gato com um amigo, mas não sem lágrimas nos olhos.
E por último, veio falar comigo. Que a minha inspiração voltasse, que eu fosse feliz e criasse um novo personagem. Insisti que ficasse, ou que me deixasse o acompanhar. Mas ele foi firme, me enrolou com uma história de que meu problema era ele, e que dá próxima vez eu escolhesse uma mulher, porque são mais complexas e dão mais assunto. Segurei pra não chorar e tive a impressão que ele também. Mas o canalha ia chorar era de felicidade. Aí, eu prometi escrever um último conto sobre ele, sobre isso. E ele respondeu: ''Escreve, mas vai ser um conto sobre você, e não sobre mim.'' .